O papel da/o psicóloga/o na luta pela dignidade das pessoas trans

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A transexualidade ainda é considerada um transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O mesmo ocorria com a homossexualidade até 1990. A falta de reconhecimento e a consequente negação de direitos afetam diretamente a saúde mental dessa parcela da população. Onde se encaixa a/o psicóloga/o nesse contexto?

Marcelo Caetano participou da terceira edição do UFPR Fora do Armário, realizado na faculdade de Direito da UFPR
Marcelo Caetano participou da terceira edição do UFPR Fora do Armário, realizado na faculdade de Direito da UFPR

O Dia Internacional pela Despatologização da Transexualidade é comemorado, em 2015, no dia 24 de outubro. Anualmente, a campanha mundial Stop Trans Pathologization (STP) seleciona um dia para dar mais visibilidade a essa pauta tão importante. A transexualidade (condição de alguém cuja identidade de gênero não se enquadra no gênero que lhe foi assinalado ao nascimento) ainda é considerada um transtorno mental na Classificação Internacional de Doenças (CID). O mesmo ocorria com a homossexualidade até 1990.

Para o estudante de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e ativista da luta trans, Marcelo Caetano, a patologização das identidades de gênero trans acaba por negar o direito à humanidade a essa parcela da população. “Dizer que essa identidade é uma doença significa dizer que há algo errado em existir dessa forma, que houve um erro, um desvio. A medicina tenta provar se esse erro é genético, neurológico, se tem origem embrionária… São muitas as hipóteses, mas todas elas consideram que a identidade trans é um desvio no caminho de um ser saudável”, critica Marcelo, primeiro transexual que obteve o direito de utilizar o nome social dentro da Universidade de Brasília.

A patologização da população trans abre pretexto, segundo Marcelo, para que não sejam desenvolvidas políticas de reversão a cenários alarmantes, como o fato de nove entre dez mulheres trans viverem da prostituição. “Esse número é um escândalo, ele demonstra a catástrofe produzida pela transfobia, que é justificada pela ciência médica. Esse processo de patologização é, no final das contas, a própria origem do abismo em termos de direitos e acesso a políticas com que as pessoas trans se deparam hoje”, afirma.

E qual seria o papel da Psicologia nesse cenário? Para Marcelo, o processo de verificação da identidade trans, operado especialmente pelos saberes Psi, usam como “modelo” a identidade cisgênera (cenário em que a identidade de gênero da pessoa se adequa ao gênero que lhe foi designado no nascimento). A Psicologia precisaria reformular, de acordo com o estudante, as possibilidades de colaborar para a emancipação desses corpos.

“Pessoas trans, muitas vezes, têm uma experiência de sofrimento que poderia se beneficiar de práticas de cuidado, afinal de contas, a transfobia é um motor de sofrimento mental. Mas essas pessoas precisam ser enxergadas como pessoas, com questões múltiplas, diferentes vivências. Pessoas trans não são apenas isso, são uma multiplicidade de coisas que precisa de atenção e cuidados. Então, é preciso compreender isso na hora de pensar as práticas da Psicologia”, sugere Marcelo.

A saúde mental da população LGBT

Para falar sobre a saúde mental da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), o psicólogo e assessor sindical do Sindypsi PR, Cesar Fernandes (CRP 08/16715), foi convidado para participar, ao lado de Marcelo Caetano, do seminário UFPR Fora do Armário, realizado pelo Partido Acadêmico Renovador (PAR), do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná, na manhã da sexta-feira do dia 16. Cesar abordou o poder exercido pelos saberes médicos e psicológicos na patologização e estigmatização da população LGBT.

Debate Saúde Mental e população LGBT, na terceira edição do seminário UFPR Fora do Armário
Debate Saúde Mental e população LGBT, na terceira edição do seminário UFPR Fora do Armário

Cesar fez um resgate sobre a função do saber médico e das instituições hospitalares na definição do que se encaixa na normalidade. “O hospital sempre teve a função de acolhimento. Mas, com o passar do tempo, este espaço também começou a exercer a função de recolhimento e higienização social. No século XVII, o hospital ocupou um terceiro espaço entre a Polícia e a Justiça em um processo de “limpeza” de camadas excluídas da sociedade. Prostitutas, hereges, alquimistas, órfãos e as pessoas homossexuais e transexuais eram internadas. O médico era o responsável por dirigir estes espaços com um tríplice poder: o de denunciar, julgar e executar o recolhimento”, recorda Cesar.

A concordância entre sexo biológico, gênero e orientação sexual, normatizada pela heterossexualidade e cisgeneridade , que, segundo Cesar, perdura até os dias de hoje, dá legitimidade à ideia de que apenas esse arranjo é legítimo. “Esse processo de naturalização transforma em doença qualquer desarranjo. A partir disso, é criado um processo de estigmatização, que é quando a pessoa tem uma característica pontual que é socialmente invalidada e deslegitimada, e isso se torna a característica geral da pessoa, como se a ela fosse só aquilo”, explica.

É nesse sentido que se encaixa a fala de Marcelo Caetano, homem trans, estudante de Ciência Polícia da UnB e militante da causa LGBT. Para ele, a sociedade produz desigualdades em torno da questão do corpo, ou, como ele menciona, sobre a “ideia de corpos precários”. “O corpo define os sujeitos que têm direitos e os que não têm. Essas demarcações vêm inseridas no corpo, em determinadas marcas que são carregadas a partir do corpo. Eu, a princípio, não carrego nada que diga que eu sou uma pessoa trans, mas por ter nascido com determinado corpo, o mundo diz que eu sou uma pessoa que deve se submeter a uma série de precariedades”, aponta Marcelo.

Marcelo entende a patologização da transexualidade como uma questão política que controla os corpos. Esse domínio, de acordo com o estudante, recai mais fortemente nos corpos que são mais precários seja por questão de raça, de classe ou de localidade. “Por exemplo, um corpo trans branco com ensino superior completo é muito diferente de um corpo trans negro que não conseguiu terminar o ensino fundamental. Esse cenário se reverte em práticas concretas definidas pela maneira como nós somos corporalmente”, exemplifica.

Em relação à saúde mental da população LGBT, Marcelo questiona a ideia de que há corpos que precisam ser protegidos de outros corpos, cuja existência precisa ser exterminada. Exemplo desse pensamento seria o discurso de ódio de fundamentalistas religiosos contra a população LGBT. “Dificilmente alguém vai falar disso abertamente, mas a prática política de algumas instituições têm esse efeito. É muito cruel que existam índices de suicídios tão altos dentro da população LGBT. Essa é uma forma de controle que, aparentemente, deixa as pessoas com as mãos limpas”, confronta Marcelo.

cesarCesar ressalta que, com o boom, nos anos 1980, do HIV/Aids no Brasil, o discurso médico contribuiu para a estigmatização da população LGBT. Por conta disso, criou-se a cultura de falar predominantemente da saúde sexual de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, menosprezando uma parte importante da saúde dessa parcela da população: a saúde mental. “Por isso são necessárias políticas públicas de atenção à saúde integral desse segmento, e não só à saúde sexual. Essa é só uma parte do que somos”, aponta Cesar.

E como essa ausência de legitimidade afeta a saúde mental das pessoas LGBTs? Para Cesar, esse segmento da população se sente marginalizado na medida em que tem sua experiência de vida contestada, colocada em um patamar de não legítimo. “A incessantes disputa por legitimidade promove uma insegurança muito grave para a população LGBT, não só jurídica, mas também emocional”, explica.

A saída para esse cenário seria as lutas pela despatologização da transexualidade e o fomento a espaços de orgulho LGBT. “É importante ressaltar que não é a vivência da nossa sexualidade que nos causa problemas. É a incapacidade da sociedade em reconhecer a comunidade LGBT como legítima. Isso sim adoece”, finaliza.

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