O psicólogo e a capacidade de trabalhar e amar

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Competividade, pressão organizacional e relação turbulenta com os colegas de trabalho são características comuns do mundo do trabalho hoje em dia. Contraditoriamente, estes itens formam a receita perfeita para o surgimento de casos de assédio moral. Como ficam a psicóloga e o psicólogo neste cenário? De que maneira as práticas de assédio atingem a categoria? Este é o tema da segunda matéria da série Chega de Silêncio. Confira!

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As condições de trabalho deixam cada vez mais pessoas doentes. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que, anualmente, ocorrem 160 milhões de casos não fatais de doenças relacionadas ao trabalho. Já a Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que a depressão já está no topo da lista de doenças que tornam a população incapaz de trabalhar. Por conta do envolvimento direto com grandes cargas emocionais, as/os psicólogas/os não estão blindadas deste mal. Mas, para além da relação com o paciente, há outros problemas do ambiente de trabalho que podem desencadear em sofrimento.

Para o psicólogo e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), José Roberto Heloani (CRP 06/43418), as relações de poder dentro da organização podem conduzir a um cenário de assédio moral. “O psicólogo que destoar de forma significativa da ideologia da organização em que trabalha, se ele não tiver um bom preparo, é provável que sofra assédio”, alerta. Um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, Heloani ressalta que não há uma característica específica do assédio sofrido pela categoria, mas chama a atenção para algumas perspectivas.

A função de apontar e resolver os problemas das organizações pode levar o psicólogo, segundo Heloani, a uma posição instável dentro da empresa. “Por incomodar e diferir das demais pessoas, ele pode ser assediado. Ele está apontando um problema que existe e que, provavelmente, boa parte daquelas pessoas conhecia, mas que, por várias razões, não convinha explicitar”. Nestes casos, Heloani assegura que o importante é não se isolar.

A psicóloga e especialista em saúde do trabalhador, Fernanda Zanin (CRP 08/15746), compartilha da mesma preocupação quanto ao impacto da intervenção do psicólogo frente às chefias. “Nas empresas em que o psicólogo trabalha com Recursos Humanos, por exemplo, é difícil ele aceitar o olhar frio para o ser humano. Essa perspectiva infelizmente pode fazer com o psicólogo chame a atenção e seja assediado por esses motivos”, comenta.

Heloani reforça que o compromisso do profissional deve ser primeiro com a dignidade humana e depois com a produtividade da empresa, mas salienta que é arriscado cair no isolamento. “Se o psicólogo se isolar, se ele tiver uma visão ingênua da organização, ele perde o respaldo e acaba se tornando o sujeito que aponta os problemas, mas que é obrigado a recuar. Ele se torna uma presa frágil. O psicólogo que entra em um cenário desse deve estar instumentalizado através do seu Conselho Regional de Psicologia, suas associações e sindicatos”, orienta.

“O assédio moral tem sua função. Nessas áreas, ele é usado para moldar ou afastar os sujeitos”
José Roberto Heloani

O outro como inimigo

As particularidades do trabalho da/o psicóloga/o podem resultar em assédio moral não só em grandes corporações, alerta Heloani. O confronto com colegas de trabalho também ocorre em grande medida nos hospitais, onde a lógica empresarial também está presente. “O psicólogo muitas vezes sente dificuldade de fazer uma análise das relações de poder. É uma pessoa que não está acostumada a fazer a leitura do coletivo, e óbvio que tem a ver com a formação dele. Ao entrar em um hospital, ele tem que entender que o ambiente que não é “santo”. A sua relação com o paciente é interposta por muitas variáveis. Por isso, tem que ter atualização política”, indica o professor.

O fato de haver visões diferentes sobre um mesmo problema ou paciente pode causar conflitos, principalmente porque, no Brasil, algumas profissões conquistaram, de acordo com Heloani, “uma representação social de liderança”. Este é o caso dos médicos. Ainda que este cenário crie turbulências no ambiente de trabalho, engana-se quem acredita que o assédio moral horizontal (feito de trabalhador para trabalhador) é um problema pessoal.

“O assédio moral tem sua função. Nessas áreas, ele é usado para moldar ou afastar os sujeitos. Desqualificá-los, desmoralizá-los. Geralmente, o assédio não é pessoal. A sua função é colocar aquela lógica, ideologia, e até concepção teórica daquele local na cabeça do psicólogo, ou então ele começa a adoecer, ou ele fica tão desqualificado que não consegue trabalhar. É uma forma simples de você simplesmente colocar o sujeito para a fora. Para a empresa isso é bom. Quando o sujeito pede as contas, a empresa sequer tem que arcar com as verbas rescisórias”, explica Heloani.

Capacidade de trabalhar e amar

Para Sigmund Freud, ter saúde mental significa ter a capacidade de trabalhar e amar. Esta habilidade estaria cada vez mais distante das pessoas, já que, segundo Heloani, existe, nas organizações, uma crescente competitividade criada pelo capitalismo. “O psicólogo deixa de ser colega e passa a ser rival. Aí a gente acaba tendo um ambiente que fica negativo, que não soma, no qual as pessoas pensam e agem de forma individual mesmo utilizando um discurso de cooperação. Cria-se uma lógica cínica que termina em adoecimento. Isso é muito patológico, haja vista que não trabalhamos só 8 horas. Por conta da informática, trabalhamos muito mais”, analisa Heloani.

Para a advogada trabalhista Gabriela Caramuru, que trabalha com casos de assédio moral, as relações interpessoais no trabalho são diretamente afetadas pelo ambição dos empresários e empregadores em extrair o máximo de produtividade das/dos trabalhadoras/es, independente das consequências desses métodos em suas vidas. “Essa organização do trabalho, que permite a exploração, é própria do modelo de produção em que vivemos: o capitalismo. Certamente, o assédio moral e a competição gerada entre os trabalhadores contribuem para um ambiente de trabalho ruim”, assegura.

Frente ao cansaço e à exploração, mas tendo que defender um discurso falacioso de cooperação, a/o psicóloga/o tende a entrar em crise. “O trabalho continua sendo central na vida das pessoas. As pessoas constroem a sua imagem por meio do trabalho. Quando a diferença entre o que é idealizado e o que é real aumenta, essa diferença bruta causa a crise identitária. Não existe uma identidade pessoal dissociada da profissional. A pessoa é uma só, mas com diferentes papéis”, aponta Heloani.

“O trabalho se ransformou num prêmio de loteria e é provável que esse sentimento também passe para a vida pessoal. Seria até esquizofrênico uma pessoa ser insegura no trabalho e segura na vida privada”
José Roberto Heloani

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O Sindypsi PR está aqui para te ajudar. Se você está passando por alguma situação de assédio moral ou sexual, entre em contato com a gente pelo e-mail assediomoral@sindypsipr.com.br . O atendimento será sigiloso e chegaremos juntos a uma solução para o seu caso.

Confira a primeira matéria da série Chega de Silêncio -> Assédio moral, um crime marcado pelo silêncio e sofrimento

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